domingo, 3 de abril de 2011

ACERCA DE DÉCIO PIGNATARI - O QUE É COMUNICAÇÃO POÉTICA?

Divulgo aqui alguns trechos da obra  "o que é comunicação poética?" de Décio Pignatari que (tentando fugir do lugar comum mas não fugindo) dispensa qualquer comentário:

SEMIÓTICA POÉTICA:
Para o lingüista Jakobson, duas são as chamadas figuras de retórica que
predominam nessa estruturação: a metonímia e a metáfora.
Metonímia = tomar a parte pelo todo
prevalece no sintagma
Metáfora = relação de semelhança entre duas coisas
designadas pela palavra ou conjunto
de palavras
prevalece no paradigma
Quanto à metonímia, que se observa nas palavras em geral, não há
dificuldade de entender, pois você já sabe que a palavra é formada da
montagem de partes ou pedaços de sons, que são os fonemas. As palavras de uma frase, por sua vez,
são pedaços extraídos do repertório léxico do idioma (dicionários) e das
categorias gramaticais, onde se agrupam por semelhança das funções que
exercem na frase (substantivos, advérbios, conjunções, etc.). Além disso,
elas designam objetos que são pedaços da chamada realidade.
O caso da metáfora, porém, cujos signos tendem a ser ícones (figuras),
apresenta uma alternativa. Comparemos dois exemplos:
exemplo a) José é águia
Que observa você aqui? Você percebe certos traços de semelhança ou
analogia entre José e a águia e os relaciona numa metáfora. Você nota,
porém, que a semelhança não está nos próprios signos (palavras, símbolos),
mas nas coisas ou objetos — no caso, uma pessoa e uma ave —, designados
por eles. Vemos, então, que a metáfora — neste e na maioria dos casos — é
um curioso fenômeno de analogia por contigüidade. Ou seja, ela é um ícone
por contigüidade — o que é uma espécie de contradição. Trata-se de um
ícone degenerado; por isso, a gente pode definir a metáfora como sendo um
hipoícone por contigüidade.
exemplo b) A guiar é águia
Você pode perceber que, aqui, há algo mais do que a semelhança
metafórica do primeiro exemplo. Que algo mais é esse? É que aqui há uma
transposição ou tradução da semelhança entre objetos para uma semelhança
de sons entre os próprios signos que designam esses objetos.
A analogia não fica só entre as partes ou objetos designados — mas é
trazida para as letras, os sons, as figuras dos próprios signos. Temos então
um verdadeiro ícone — um ícone por similaridade.
Como a semelhança de sons entre palavras (ou numa mesma palavra) é
chamada de paronomásia, achamos que ela, tanto quanto a metáfora — ou
até mais —, caracteriza o eixo de similaridade (paradigma).
Facilitando ainda mais as coisas, dá pra resumir do seguinte jeito: a
metáfora é uma semelhança de significados, a paronomásia é uma
semelhança de significantes.
É a possibilidade de inumeráveis ocorrências de sons semelhantes
dentro do sistema língua que cria as condições para o surgimento de
fenômenos como a paronomásia, a rima e a aliteração (= cadeia de sons
iguais ou semelhantes a intervalos). Uma cinqüentena de fonemas é
responsável pela formação das 80000 palavras que constituem o repertório
léxico básico da língua portuguesa.
A paronomásia possibilita o trocadilho e a poesia (junto com a
metáfora).
Descobriu Jakobson que a linguagem apresenta e exerce função poética
quando o eixo de similaridade se projeta sobre o eixo de contigüidade.
Quando o paradigma se projeta sobre o sintagma. Em termos da semiótica
de Peirce, podemos dizer que a função poética da linguagem se marca pela
projeção do ícone sobre o símbolo — ou seja, pela projeção de códigos nãoverbais
(musicais, visuais, gestuais, etc.) sobre o código verbal. Fazer poesia
é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura). Figura é só desenho visual? Não. Os sorf de uma tosse e de uma melodia
também são figuras: sonoras.
Em poesia, você observa a projeção de uma analógica sobre a lógica da
linguagem, a projeção de uma “gramática” analógica sobre a gramática
lógica. É por isso que a simples análise gramatical de um poema é
insuficiente. Um poema cria a sua própria gramática. E o seu próprio
dicionário. Um poema transmite a qualidade de um sentimento. Mesmo
quando parece estar veiculando idéias, ele está é transmitindo a qualidade do
sentimento dessa idéia. Uma idéia para ser sentida e não apenas entendida,
explicada, descascada.
A maioria das pessoas lê poesia como se fosse prosa. A maioria quer
“conteúdos” — mas não percebe formas. Em arte, forma e conteúdo não
podem ser separados. Perguntava o poeta Yeats: “Você pode separar o
dançarino da dança?” Quem se recusa a perceber formas não pode ser
artista. Nem fazer arte.
Diz a tradição que todo japonês deve fazer pelo menos um poema em
sua vida. A maioria faz (em geral, um poema bem curto)... e não mostra a
ninguém. Nesse poema ele procura resumir a sua visão do mundo. Para ele,
esse poema é a sua própria pessoa transformada em signos.
Veja, neste exemplo de Carlos Drummond de Andrade, a palavra
virando coisa, figura, e criando seu próprio dicionário:
Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
O “inseto” deste poema não é a palavra “inseto”, mas o vocábulo cava.
Pelo corte do verso e pela reduplicação, o vocábulo-inseto “cava” é que se
move e adentra o poema como se este fosse a terra.
Paronomásia 1 (propriamente dita):
Violetas violentas
Paronomásia II (anagrama):
Comer e coçar é só começar
Comentou um adolescente a seu pai, observando esse provérbio: “É isso
mesmo..está certo — porque “comer” e “coçar” estão dentro de “começar”.
Paronomásia III (aliteração):
Vaia o vento
e vem vem
Vaia o vento
e vai vai
Paronomásia IV (rima):
Murmuro
muro


                                  .       .     .     .

RITMO

Na prática poética, use o seu ouvido. Para os poemas sem versos, use
também o olho. Sinta as pulsações. Leia poemas em voz alta. Poemas seus.
E de outros. Grave no gravador. Ouça. Ouça. Torne a gravar. Ouça.
Compare. Se precisar de mais de uma voz, chame os amigos.
O ritmo é uma sucessão ou agrupamento de acentos fracos e fortes, longos e
breves. Esses acentos não são absolutos, mas relativos e relacionais —
variam de um caso para outro. O ritmo tece uma teia de coesão.
O ritmo pressupõe um jogo fundo/figura. No caso do som, o fundo é o
silêncio. O contra-acento é a pausa. Trata-se de um silêncio ativo, não
passivo e neutro. O silêncio é parte integrante da música e da poesia.
Os ritmos formam sistemas. Você pode aproveitálos, rejeitá-los, tentar criar
outros. Como ele é uma figura, um ícone, não pode ser inteiramente
explicado. O significado das palavras interfere no ritmo:
1) Chega hoje da Europa o embaixador Moreira
2) Dança, dança, morena, imperatriz do samba
3) Sobre a triste Ouro Preto o ouro dos astros chove.
Reduzido a esqueleto, o ritmo pode ser tido como batidas de compasso,
cadência, métrica. Nos três exemplos acima, temos praticamente a mesma
métrica ou compasso — mas não temos o mesmo ritmo. A informação banal
e prosaica da primeira frase não diz nada ao ouvido em matéria de ritmo. Na
segunda, a informação também é comum, mas já atua ritmicamente. Na
terceira — que é um verso de Bilac — o ritmo se impõe como figura, como ícone, para acompanhar uma informação pouco comum.
Na tradição poética ocidental, 4 são os esquemas rítmicos fundamentais
— 2 binários e 2 ternários. Muito fáceis de entender e de lembrar. Vamos
ilustrar cada um com acentos gráficos, palavras isoladas, frases correntes,
versos e desenhos.
1. Ritmo binário ascendente: um acento fraco (breve) seguido de um
forte (longo). Assim:
○ ●
azul
Em plena luz do dia
○ ● ○ ● ○ ●
“A nuvem guarda o pranto”
(Alphonsus de Guimarães)
“A sorte deste mundo é mal segura”
(Tomás Antônio Gonzaga)
Observe, neste último exemplo: o “é” funciona como acento fraco e faz
elisão (se liga) com o “o” de “mundo”:
A sorte deste mundoé malsegura.
Numa fachada de casa antiga, esse ritmo ficaria assim, visualmente:
II. Ritmo binário descendente: um acento forte seguido de um acento
fraco. Assim:
● ○
boca
Dei vexame ontem
● ○ ● ○ ●
“Paira à tona de água
.....................................
“Tenho tanta pena!”
(Fernado Pessoa)
A nossa fachada ficaria assim:
Figura
III. Ritmo ternário ascendente: 2 acentos fracos seguidos de um acento
forte. Assim:
○ ○ ●
Animal
Antonieta não viu o tatu
○ ○ ● ○ ○ ● ○ ○ ●
“Tu choraste em presença da morte,
Em presença da morte choraste?
Não descende o covarde do forte,
Pois choraste, meu filho não és!”
(Gonçalves Dias)
IV. Ritmo ternário descendente: um acento forte seguido de dois
acentos fracos. Assim:
● ○ ○
impeto
Fátima diz que não toma nem pílula.
● ○ ○ ● ○ ○ ● ○ ○ ●
“deito na beira do rio
mando chamar a mãe-d’água”
(Manuel Bandeira)
“fique esta vida bem viva
para contar minha história”
(Cecília Meireles)
“Fonte de fogo
dá- me essa Glória
Sarça de fogo
dá- me o Poder
Cinza de fogo
dá-me esse Reino”
(Mário Faustino)




AMOSTRAGEM SINCRÔNICA:
TUDO AO MESMO TEMPO
Ezra Pound classifica os poemas em três tipos fundamentais:
1) aqueles em que predomina a fanopéia: imagens, comparações,
metáforas;
2) aqueles em que predomina a melopéia: música, mesmo dissonante ou
antimúsica;
3) aqueles em que predomina a logopéia: “dança das idéias entre as
palavras”.
Você pode encontrar até as três características num mesmo poema.
A logopéia tende a beirar a prosa. É a similaridade caminhando rumo à
contigüidade, o ícone rumo ao símbolo, o analógico rumo ao lógico.
Fanopéia e melopéia:
Longe de prata semeava a seara...
............................................(Oscar Rosas, 1862-1925)
Fanopéia:
Maria Magdá, debutante de maio,
esmaga um rouxinol na axila depilada,
e Fred (Frederico) e Ted (Teobaldo)
defloram seu baton nas tardes de Eldorado.
(Haroldo de Campos)
Logopéia:
Tenho tanto sentimento
Que é freqüente persuadir-me
De que sou sentimental,
Mas reconheço, ao medir-me,
Que tudo isso é pensamento,
Que não senti, afinal.
(Fernando Pessoa)
Melopéia:
Me sinto perdida
no meio da noite
da noite tão triste
tão triste de ver
de ver que não vejo
você meu desejo
desejo tão triste
tão triste de ter.
(Aloysio Figueiredo eJ. M. Costa —
Gravação de Maysa)
Fanopéia háptica (tátil):
E que prazer o meu! que prazer insensato!
— pela vista comer-te o pêssego do lábio,
e o pêssego comer apenas pelo tato.
(Gilka Machado)
Sinestesia: os sentidos contaminando os seus códigos:
Nasce a manhã, a luz tem cheiro... Ei-la que assoma
Pelo ar sutil... Tem cheiro a luz, a manhã nasce...
Oh sonora audição colorida do aroma!
.............................................(Alphonsus de Guimarães)

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